Para levar a vida que eu levo; pensar e agir igual a mim é muito simples.
Primeiro
deve-se considerar alguns fatores importantes como:
Árvore
genealógica, hereditariedade, herança material e cultural e estado psicológico.
Assim,
para você ser como eu, você precisaria ter sido tataraneto do meu tataravô,
bisneto do meu bisavô e neto do meu avô.
Teria
que ter nascido em um hospital público e vivido sua infância e parte da adolescência
num quarto e sala, com banheiro no quintal, no final de um beco estreito.
Teria
que ser filho de um vendedor de cafezinho e cigarros (futuramente o eletricista
de uma universidade particular). Homem sofrido, não fumante, que não consome
bebidas alcoólicas, honesto e trabalhador, que nunca tem tempo para futilidades
como lazer, carinho e amor. Um pai que preferisse vê-lo o ajudando no trabalho (numa
venda) que na escola estudando e aprendendo.
Teria
que ser filho de uma mulher festeira, cheia de vida, honesta, empregada
doméstica por profissão e dona de casa dedicada nas horas vagas.
Teria
que presenciar os constantes desentendimentos dos seus pais e crescer num
ambiente com pouca ou nenhuma demonstração explicita de afeto.
Teria
que ter a família desunida e sentir-se um estrangeiro dentro do próprio lar.
Ainda
na adolescência acordar com a casa inundada por uma maré de merda até o joelho.
Teria
que estudar sempre em colégio público nos turnos da manhã, da tarde e da noite também,
que é o melhor...
Teria
que ser um aluno quieto e concentrado e mesmo assim não entender muito do que seria
dado em sala de aula.
Teria
que dormir tarde, acordar mais tarde ainda, fazer o dever de casa sob adulação
da mãe, com certa pressa pra acabar para ter tempo livre para assistir TV,
brincadeiras e bicicleta, além de pensar nas garotas da escola e do bairro.
Para
ser quem eu sou o menino de oito anos deveria ter muito do menino de sete anos;
o de nove deveria ter muito do de oito; o de dez deveria ter muito do de nove;
o de onze deveria ter muito do de dez; o de doze deveria ter muito do de onze; (...);
o de trinta e dois deveria ter muito do de trinta e um. Tudo isso lentamente, imperceptível
e gradativo. Como uma máquina de costurar maluca. Como um círculo vicioso; uma
bola de neve; o lusco fusco ou a areia movediça. Como acontece com todos os
seres humanos.
Para
levar a vida que eu levo você teria que vender balas e amendoim torrado num
carrinho de madeira, amarelo, horrível, num ponto de ônibus na Cardeal da Silva,
antes dos onze anos de idade. Teria que sair para trabalhar aos quinze anos de
idade para ajudar no sustento da família recém separada e varrer uma oficina
mecânica, limpar o banheiro e esvaziar o contêiner do lixo. Teria que vender cachorro
quente com uma tia, na praia da Ondina nos fim de semana e empurrar um outro
carrinho, vermelho, até lá. Teria que vender cigarro e cachaça num boteco.
Teria que servir caranguejo num tacho fervente, em Patamares, retirar as mesas
e limpar a vidraça. Teria que vigiar o playground durante toda a madrugada num
edifício no Costa Azul. Teria que suportar um sindico chato e sua esposa megera
exigindo um playground encerado e retirar o lixo dos vinte apartamentos. Teria
que dobrar serviço, trabalhar em dias de festa, sábados, domingos e feriados. Teria
que abastecer carros no Dendezeiro e em Roma, aturar clientes insuportáveis,
roubos, prejuízos e às vezes ficar praticamente sem salário a receber. Teria
que carregar materiais de construção, barro e entulho um dia inteiro para
ganhar dinheiro ou simplesmente para ajudar um amigo ou parente.
Não
poderia saber tocar instrumentos musicais nem cantar nem compor. Inclusive axé,
pagode e arrocha que também dá algum dinheiro pela elaboração e complexidade.
Não poderia ser bom de bola e tampouco deixar-se seduzir pelo tráfico de drogas
e seu dinheiro “fácil”. Teria que ser tímido, quase matuto, e fracassar ou desmotivar-se
em quase tudo que tentar. Inclusive no amor.
Para
pensar e agir igual a mim seria necessário não ter a boa educação escolar que
eu não tive; Teria que ler todos os livros e textos que eu li; Parar para
imaginar cada frase, cada estrofe, cada capítulo como eu fiz; Ouvir todas as
musica que escutei; Se arrepiar como me arrepiei; Assistir todos os filmes,
documentários e peças teatrais que assisti; Se emocionar e chorar como eu
chorei; Participar de todas as aulas e palestras que participei; Não viajar
para todos os lugares que não viajei. Ver com os meus olhos, ouvir com a mesma minha
atenção, analisar, interpretar, entender e sentir da forma que eu senti.
Para
levar a vida que eu levo e vê-la nítida como eu vejo você precisaria ficar oito
anos trabalhando, sem estudar. Prestar vestibular para um bom curso em uma boa
universidade, sem dinheiro e tempo para cursinho pré-vestibular. Precisaria
estudar em casa, sozinho, e no trabalho (escondido do gerente) entre um
abastecimento e outro. Além do mais, você precisaria ser o primeiro, entre
todos os seus familiares, a ingressar e frequentar uma faculdade como estudante.
Conhecer novas pessoas com outros mundos e outras realidades distintas.
Contudo, sem esquecer as suas origens e realidade que, apesar de tudo, não
seria pior que outras realidades mais atrozes.
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