terça-feira, 19 de março de 2013

Carta a um admirador


Para levar a vida que eu levo; pensar e agir igual a mim é muito simples.
Primeiro deve-se considerar alguns fatores importantes como:
Árvore genealógica, hereditariedade, herança material e cultural e estado psicológico.
Assim, para você ser como eu, você precisaria ter sido tataraneto do meu tataravô, bisneto do meu bisavô e neto do meu avô.
Teria que ter nascido em um hospital público e vivido sua infância e parte da adolescência num quarto e sala, com banheiro no quintal, no final de um beco estreito.
Teria que ser filho de um vendedor de cafezinho e cigarros (futuramente o eletricista de uma universidade particular). Homem sofrido, não fumante, que não consome bebidas alcoólicas, honesto e trabalhador, que nunca tem tempo para futilidades como lazer, carinho e amor. Um pai que preferisse vê-lo o ajudando no trabalho (numa venda) que na escola estudando e aprendendo.
Teria que ser filho de uma mulher festeira, cheia de vida, honesta, empregada doméstica por profissão e dona de casa dedicada nas horas vagas.
Teria que presenciar os constantes desentendimentos dos seus pais e crescer num ambiente com pouca ou nenhuma demonstração explicita de afeto.
Teria que ter a família desunida e sentir-se um estrangeiro dentro do próprio lar.
Ainda na adolescência acordar com a casa inundada por uma maré de merda até o joelho.
Teria que estudar sempre em colégio público nos turnos da manhã, da tarde e da noite também, que é o melhor...
Teria que ser um aluno quieto e concentrado e mesmo assim não entender muito do que seria dado em sala de aula.
Teria que dormir tarde, acordar mais tarde ainda, fazer o dever de casa sob adulação da mãe, com certa pressa pra acabar para ter tempo livre para assistir TV, brincadeiras e bicicleta, além de pensar nas garotas da escola e do bairro.

Para ser quem eu sou o menino de oito anos deveria ter muito do menino de sete anos; o de nove deveria ter muito do de oito; o de dez deveria ter muito do de nove; o de onze deveria ter muito do de dez; o de doze deveria ter muito do de onze; (...); o de trinta e dois deveria ter muito do de trinta e um. Tudo isso lentamente, imperceptível e gradativo. Como uma máquina de costurar maluca. Como um círculo vicioso; uma bola de neve; o lusco fusco ou a areia movediça. Como acontece com todos os seres humanos.

Para levar a vida que eu levo você teria que vender balas e amendoim torrado num carrinho de madeira, amarelo, horrível, num ponto de ônibus na Cardeal da Silva, antes dos onze anos de idade. Teria que sair para trabalhar aos quinze anos de idade para ajudar no sustento da família recém separada e varrer uma oficina mecânica, limpar o banheiro e esvaziar o contêiner do lixo. Teria que vender cachorro quente com uma tia, na praia da Ondina nos fim de semana e empurrar um outro carrinho, vermelho, até lá. Teria que vender cigarro e cachaça num boteco. Teria que servir caranguejo num tacho fervente, em Patamares, retirar as mesas e limpar a vidraça. Teria que vigiar o playground durante toda a madrugada num edifício no Costa Azul. Teria que suportar um sindico chato e sua esposa megera exigindo um playground encerado e retirar o lixo dos vinte apartamentos. Teria que dobrar serviço, trabalhar em dias de festa, sábados, domingos e feriados. Teria que abastecer carros no Dendezeiro e em Roma, aturar clientes insuportáveis, roubos, prejuízos e às vezes ficar praticamente sem salário a receber. Teria que carregar materiais de construção, barro e entulho um dia inteiro para ganhar dinheiro ou simplesmente para ajudar um amigo ou parente.
Não poderia saber tocar instrumentos musicais nem cantar nem compor. Inclusive axé, pagode e arrocha que também dá algum dinheiro pela elaboração e complexidade. Não poderia ser bom de bola e tampouco deixar-se seduzir pelo tráfico de drogas e seu dinheiro “fácil”. Teria que ser tímido, quase matuto, e fracassar ou desmotivar-se em quase tudo que tentar. Inclusive no amor.

Para pensar e agir igual a mim seria necessário não ter a boa educação escolar que eu não tive; Teria que ler todos os livros e textos que eu li; Parar para imaginar cada frase, cada estrofe, cada capítulo como eu fiz; Ouvir todas as musica que escutei; Se arrepiar como me arrepiei; Assistir todos os filmes, documentários e peças teatrais que assisti; Se emocionar e chorar como eu chorei; Participar de todas as aulas e palestras que participei; Não viajar para todos os lugares que não viajei. Ver com os meus olhos, ouvir com a mesma minha atenção, analisar, interpretar, entender e sentir da forma que eu senti.

Para levar a vida que eu levo e vê-la nítida como eu vejo você precisaria ficar oito anos trabalhando, sem estudar. Prestar vestibular para um bom curso em uma boa universidade, sem dinheiro e tempo para cursinho pré-vestibular. Precisaria estudar em casa, sozinho, e no trabalho (escondido do gerente) entre um abastecimento e outro. Além do mais, você precisaria ser o primeiro, entre todos os seus familiares, a ingressar e frequentar uma faculdade como estudante. Conhecer novas pessoas com outros mundos e outras realidades distintas. Contudo, sem esquecer as suas origens e realidade que, apesar de tudo, não seria pior que outras realidades mais atrozes.

Portanto, seguindo esta fórmula mágica a risca, alcançado os trinta e dois anos necessários, tu pensarás e agirás igual a mim. Serás como eu. E estarás pronto pra lograr dos frutos podres de um pomar farto feito o meu.

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